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OPINIÃO
Em Março de 2003, foi inaugurado o Lar de Jovens em Risco, a primeira valência de apoio social criada pela Santa Casa da Misericórdia de Stº. António de Lagoa, com o objectivo de acolher, em regime de internamento, dez jovens do sexo masculino, em situação de negligência ou com comportamentos de risco, encaminhados pelos Tribunais e pelas
Comissões de Promoção e Protecção de Crianças e Jovens.
Tive o privilégio de participar, como coordenadora técnica, na sua criação e organização com uma pequena e dinâmica equipa de colaboradores (cinco ajudantes de lar e uma cozinheira), posteriormente alargada com a inclusão de uma psicóloga, que me ajudaram na execução de actividades educativas, culturais, lúdicas e recreativas de modo a responder às constantes solicitações e necessidades de cada um dos jovens acolhidos.
Trabalhar com jovens adolescentes é, por si só e em termos gerais, um grande desafio, porque
atravessam um período de vida em que, normalmente, desafiam tudo e todos, nutrem um
especial gosto pelos riscos e pela transgressão de regras, para se afirmarem e serem aceites
pelos seus pares.
Trabalhar com jovens adolescentes como os que acolhemos, é um desafio acrescido porque, para além das características próprias da idade, de modo geral foram vítimas de negligência na sua infância, cresceram sem afetos e sem regras, entregues a si próprios, cognitivamente desestimulados, sujeitos a estilos de vida de violência, maus tratos físicos e psicológicos, num ambiente em que a escola e os cuidados de saúde são desvalorizados.
Em certos casos, constata-se que os jovens são portadores de alguma perturbação do foro mental e a maioria vivenciou situações de comportamentos disfuncionais como consumos de substâncias psicotrópicas, furtos e prostituição.
Para além do seu alojamento, proporcionou-se a todos os jovens acolhidos um ambiente familiar acolhedor, dando-lhes atenção individual, afecto, orientações objectivas e firmes, procurando sempre responsabilizá-los pelos seus atos e incutir-lhes regras saudáveis de vivência em sociedade.
Incutiram-se modelos de comportamento que lhes proporcionassem um futuro pessoal, social e profissional autónomo e responsável, em que são factores determinantes o aproveitamento escolar, a formação profissional, a higiene pessoal, habitacional, a alimentação diversificada e equilibrada que influência a saúde, assim como os próprios cuidados de saúde em geral.
Através da Unidade de Saúde de Lagoa foi disponibilizado a todos os jovens acompanhamento contínuo de medicina geral e de enfermagem. Elementos complementares de diagnóstico, consultas de psiquiatria, de pedopsiquiatria, de psicologia, terapia de grupo, e tratamentos de estomatologia tanto ao nível do sistema público como do privado.
A Instituição sempre promoveu aos jovens festas de aniversário (para muitos foi a primeira festa de anos que tiveram), de Comunhão, do Crisma, de Natal, Carnaval, e Páscoa. Proporcionaram-se convívios com amigos e familiares, dentro e fora da instituição, participação em actividades lúdicas, desportivas, recreativas, férias com familiares e outras
actividades até mesmo fora da ilha como colónias de férias.
Foram quase 11 anos de trabalho intenso, com grande dedicação, empenho e que muito me exigiu, física e emocionalmente. Por outro lado, foi um trabalho muito enriquecedor, em que cada dia era sempre diferente do anterior, que me proporcionou enorme prazer apesar de termos passado por momentos de desânimo e de alguma frustração por nem sempre obtermos, no imediato, os resultados positivos correspondentes ao trabalho, dedicação e
esforço dispendidos.
Nem todos os jovens que foram acolhidos na Instituição aproveitaram a oportunidade que lhes foi proporcionada, seja por opção pessoal, por limitações de saúde, ou ainda por falta de suporte familiar e social aquando da saída da Instituição. No entanto, acredito que algo de positivo é sempre assimilado e que mais tarde dará os seus frutos por mais pequenos que sejam. Aliás, há relatos de desabafos por parte de alguns jovens de arrependimento por não
terem aproveitado a oportunidade que lhes foi facultado.
Mudar comportamentos é sempre um desafio lento e complexo, dependente de inúmeros factores, sejam eles pessoais, familiares e comunitários.
Prefaciando um famoso poeta catalão "O Caminho faz-se andando". Leva algum tempo a verificarem-se os resultados positivos do trabalho que se desenvolve sobretudo com adolescentes traumatizados por um percurso infantil difícil ou por dificuldades de saúde, mas hoje posso congratular-me com alguns jovens que foram alvo da nossa intervenção
e que estão a fazer um percurso de vida equilibrado e responsável e que, reconhecidos, agradeceram, de forma emocionada, os momentos que viveram no Lar.
Acredito que parte desse sucesso deve-se ao empenho, dedicação e competência no trabalho que foi desenvolvido por uma equipa unida, responsável e motivada, sempre com vontade de fazer mais e melhor com aqueles que lhes foram confiados.
A outra parte deve-se, naturalmente, à vontade do próprio jovem em querer mudar os seus comportamentos desajustados e aproveitar as oportunidades que lhe foram proporcionadas para trilhar novo percurso de vida, com menores comportamentos de risco. O trabalho mais difícil é, precisamente, o de lhe incutir a vontade e ambição necessárias à mudança. Este foi e será sempre o principal e eterno desafio.
Assistente Social Maria de Fátima Sousa
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